Marcelo Coelho
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Escolas públicas e particulares de todo o Brasil estão obrigadas a tocar o Hino Nacional ao menos uma vez por semana. A lei foi sancionada pelo vice-presidente José Alencar e vale para todos os anos do ensino fundamental.
Minha reação a coisas desse tipo mistura muita desconfiança com uma pequena dose de culpa. Na época do ginásio, isto é, entre os 11 e os 14 anos, vivi o auge do período Médici. Enquanto conhecidos da minha família eram presos e torturados, a ideologia do "Brasil Grande" estava a todo vapor.
O sesquicentenário da Independência, em 1972, foi uma vasta operação de verde-amarelismo. Um professor de geografia, defensor da ditadura e da Transamazônica, vibrava com a data. Foi a única vez, pelo que me lembro, que assisti a um solene hasteamento da bandeira.
Poucos de nós sabíamos cantar o Hino Nacional, e os que sabiam cantavam-no a meia-voz; atitude suficiente para ouvirmos, em posição de sentido, uma bronca federal do tal professor, que estreava o novo alto-falante instalado no pátio do recreio.
Para muitas pessoas da minha geração, a ideia de tocar o Hino Nacional na escola fica assim ligada fortemente, desculpem o termo, à mais completa babaquice.
Pode ser uma visão distorcida de minha parte. Como todo símbolo, o Hino Nacional pode ter trazer muitas associações contraditórias. Representava o militarismo da ditadura; ao mesmo tempo, era cantado pelos estudantes nas passeatas contra a mesma ditadura.
Hoje em dia, podemos ouvi-lo no enterro de um grande homem ou nas galerias do Congresso, quando alguns políticos sem emprego comemoraram a aprovação da PEC dos vereadores.
Uma coisa é certa: com o Hino Nacional não se brinca. Nada ofende tanto um brasileiro quanto ouvir o hino errado em algum evento esportivo no exterior.
É bastante ambígua nossa atitude com relação à pátria. Gostamos de ver o Brasil conhecido lá fora, mas o espírito da patriotada, afinal de contas tão comum nos Estados Unidos, por exemplo, parece-nos quase uma falta de educação.
Pois bem, acho que essa mentalidade está mudando. O crescimento econômico dos últimos anos e a melhoria nos padrões de bem-estar da população talvez tenham o efeito de nos conduzir um pouco de volta aos otimismos do período Médici.
Tivemos, naquela época, o Mar de Duzentas Milhas; agora é o pré-sal.
Desde Getúlio Vargas a Petrobras não tinha tamanha evidência -e o bombardeio publicitário a favor da estatal não conhece limites.
E, é claro, o papel do Brasil mudou no cenário internacional. Quem acompanha a coluna de Nelson de Sá, aqui na Folha, encontra todo dia referências boas ao Brasil na imprensa estrangeira.
Com notícias desse tipo, cantar as margens do Ipiranga e seus brados retumbantes tende a ficar menos ridículo do que nos tempos de Collor ou de Sarney.
Serão boas notícias? Eu deveria dizer que sim, mas não consigo; não completamente. O Brasil sempre foi um país "simpático" e "pacífico" porque quase nunca se meteu em encrencas internacionais. A conversa de que temos "novas responsabilidades internacionais" me deixa de cabelo em pé. Para obter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, o país se alia à escória dos piores ditadores do planeta.
E lá vamos nós ao mercado de armas, gastando fortunas em aviões de caça e projetando submarinos nucleares. As negociações com a França têm sido questionadas, como se sabe. Mas ninguém questiona a necessidade de novas armas.
Não sou tão angelical a ponto de preferir um país totalmente desmilitarizado. Mas sei que, em tese, todo armamento, mesmo nuclear, é sempre chamado de "defensivo" pelo país que o constrói ou compra.
Como qualquer outra coisa, isso vicia: nenhuma potência militar nasceu de uma hora para outra, e se perguntarem para a maioria dos cidadãos de um país se a guerra é uma boa coisa, a resposta será negativa -até o momento em que todos saiam às ruas marchando, bandeiras desfraldadas, hinos a plenos pulmões.
Não teremos nunca a bomba atômica, garante Lula depois de afagar o presidente iraniano. Mas não é que o vice José Alencar começa a dizer que esse tipo de armamento pode ser interessante?
Certamente, é assim que um país passa a ser considerado "um país sério". Qualquer hora teremos saudades do tempo em que não era.
(Folha de São Paulo, 30/09/2009)
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