João Pereira Coutinho *
A revista virtual "Slate" analisou há tempos um fenômeno que me intriga há séculos. Apertos de mão. Nenhuma metáfora: falo mesmo do momento banal em que duas pessoas se encontram, estendem as respectivas mãos e apertam-nas como sinal de reconhecimento social.
A revista virtual "Slate" analisou há tempos um fenômeno que me intriga há séculos. Apertos de mão. Nenhuma metáfora: falo mesmo do momento banal em que duas pessoas se encontram, estendem as respectivas mãos e apertam-nas como sinal de reconhecimento social.
Para a revista, a arte está em declínio, e não necessariamente por culpa da gripe A. Está em declínio porque em declínio estão os cultores rigorosos do aperto. Posso confirmar o diagnóstico. Todos os dias, nas minhas aventuras citadinas, a evidência estende-se literalmente à minha frente. Alguém oferece a mão. Eu ofereço a minha.
E, quando o aperto se dá, tenho a desagradável sensação de que agarro um órgão mole e amorfo, muito parecido com um pênis em estado flácido. A sensação de repugnância é extrema, e a minha vontade é fugir dali: no aperto de uma mão, revela-se um caráter. A maioria dos meus interlocutores não tem caráter nenhum. E o oposto também acontece: gente que não aperta, mas esmaga os ossos do parceiro. Como se um cumprimento fosse o pretexto ideal para descarregar toda a insegurança de uma vida.
O equilíbrio perfeito de que fala a "Slate", aquele cumprimento firme, gentil, sempre reforçado pelo contato visual direto, isso acabou. As pessoas apertam com muita força ou com nenhuma força. Por vezes, nem sequer apertam a mão toda; só os dedos. E raramente fitam o outro olhos nos olhos.
Mas a crise das mãos não está apenas no aperto. Está sobretudo na caligrafia. Sou professor há vários anos e testemunho a evolução estilística do fenômeno: estamos a regressar à caverna, e a pintura rupestre ameaça substituir séculos de refinamento visual.
São raros os exames legíveis. Pior: cresce o número de alunos que, chamados ao gabinete, têm de ler em voz alta os textos que escreveram. Por vezes, nem eles próprios reconhecem o que escreveram, como se a própria letra fosse um elemento estranho. Todos, ou quase todos, preferem escrever no computador e entregar trabalhos na única caligrafia que estimam. Não a caligrafia do João, da Maria ou do Francisco. Mas a caligrafia do sr. Times New Roman. Como explicar a crise das mãos?
Não pretendo vestir o traje de ludita moderno e apontar o dedo à tecnologia reinante. A história da técnica é o cemitério dos luditas. Ou o anedotário deles: hoje, lemos as sentenças apocalípticas que se disseram sobre o telégrafo, a lâmpada elétrica, o telefone ou a televisão e sorrimos com o sentido de superioridade que define a nossa arrogância.
Mas também é impossível negar completamente que a tecnologia reinante tornou as mãos, como instrumentos tangíveis de reconhecimento ou comunicação entre seres humanos, largamente dispensáveis.
Uma sucessão de redes sociais permite que as pessoas se "conheçam", se "falem", e até se "cumprimentem", sem sentirem verdadeiramente que está um ser humano do outro lado. Ninguém aprende a apertar mãos porque, desde logo, não existem mãos para apertar.
E as teclas de um computador explicam o resto: a caligrafia, um exercício demorado que exigia concentração e disciplina, é vista hoje como perda de tempo quando o computador garante rapidez e eficácia.
Esse dogma esquece uma desconfortável verdade: escrever à mão era também pensar com as mãos. Pensar ao ritmo dos seus movimentos e desenhar palavras com a prudência e a precisão de quem não pode apagar tudo e começar tudo de novo. Escrever era inscrever. Uma aproximação à eternidade. Isso significa que estou pessimista sobre o futuro? Nem pessimista nem o contrário: o futuro, como dizem os ateus, a Deus pertence.
Pessoalmente, eu só conheço o passado: há 5 milhões de anos, os australopithecus desceram das árvores, experimentaram o bipedismo e libertaram as mãos. Nascia o Homo habilis, capaz de fabricar instrumentos, de os agarrar e, com eles, de caçar nas savanas. Estava aberto o caminho para que o Homo erectus, finalmente, descobrisse o fogo. E, com o fogo, a civilização. Cinco milhões de anos depois, desconfio de que o meio em que vivemos será tão importante como foi no passado para o desenvolvimento físico e intelectual dos homens de amanhã. Não digo com isso que o futuro será dos manetas. Mas não excluo que as mãos entrarão em atrofia e que dois dedos cheguem para a conversa.
* Filósofo, escritor e colunista da Folha.
(Folha de São Paulo, 29/09/2009)
O "aperto de mão" se consolidou, como quase tudo em construção histórica do ocidente, na Grécia Antiga. Quando os guerreiros largavam a espada e optavam pela paz o gesto era selado pelo aperto de mãos, deixando claro que a espada fora trocada pela paz. Outros tempos em que a palavra honra, carater, coragem, poderiam ser descritas apenas num aperto de mãos. Hoje? Não mais, um aperto de mãos nao significa absolutamente nada.
ResponderExcluir